MORTE NO ESTÚDIO

Quando cheguei ao estúdio ela estava sobre o palco, sozinha, se debatendo por lembrar o texto que deveria dizer.
Seu rosto se abriu num sorriso ao ver-me entrar, um sorriso grande, de dentes grandes, numa boca grande que lhe atravessava o rosto como um corte de cimitarra, ou simplesmente: um sorriso de arlequim.
Seduzia muito este sorriso, principalmente a mim, sua presa mais fácil.
Mas desta vez não me deixei abater. Me mantive impenetrável detrás dos óculo escuros, mergulhado na obscuridade do ambiente e na escuridão de minha alma neste dia funesto.
Sentados, distantes uns dos outros, formando um triângulo que lhes conferia a força de sua estabilidade, Micael, seu colega ator, e Keronotov o diretor, desfrutavam da precária estabilidade adquirida no desestabilizá-la.
Tentou agarrar-se a mim, em minhas precárias energias, mas eu me defendia de suas teias, do seu abraço de polvo viscoso, do seu beijo de vampiro, mantendo-me impenetrável.
Procurei um ponto eqüidistante dos outros três membros e a pura quebra da figura geométrica demoveu-os da estabilidade à qual se apegavam.
Apalpei o revólver debaixo da jaqueta, segurei-lhe o cabo e o acariciei com quase amor.
Ela, como se se agarrasse a cordas invisíveis e podres que se rompiam ao peso de suas mãos, se debatia com patéticas tentativas por lembrar o texto e, ao mesmo tempo, criar algum gesto cênico, enquanto sua voz fazia inflexões desesperadas no intuito de adquirir alguma verdade. Mas o fato é que estava desarmada, como se a tivéssemos desnudado e agora nos exibisse suas imperfeições antes tão bem dissimuladas, do corpo e do espírito.
Quando por fim desistiu e sentou ao palco, extenuada, disse muito baixinho, num muxoxo: - Mas que merda!
Keronotov se voltou para mim com toda dificuldade que seu corpo enorme lhe impingia ao menor movimento.
- Que achou? – me pergunta.
Saboreei o clima ruim no qual se debatiam, perseverando em minha
ausência, em meu hermetísmo, por um tempo infinito.
- Então! Não vai dizer nada? – inquere Keronotov, brusco, já dando
mostras de seu caráter iracundo.
Sustentei seu olhar de patrão protegido por meus óculos escuros indevassáveis.
- Tire estes óculos, por favor! - ordenou ele.
Tirei-os não por obedecê-lo, mas, para mostrar que não temia seus olhos
azuis penetrantes de autoridade.
Keronotov era abastado. Dono do estúdio nos pagava ridículos cachês e nos aterrorizava com sua atitude de patrão, hora despótico, hora se derramando em benevolências falsas.
Criara o estúdio com o pretexto de fazer um centro de artes, mas era, na verdade, apenas um meio de exibir suas obras medíocres, sua erudição e seu dinheiro.
- Então, não vai dizer nada? - insistiu, ainda, o diretor, já meio inseguro
da sua condição de dono de todos nós.
- Quero que ela levante para ouvir - disse eu.
Ela olhou para mim, olhou para Keronotov e ele, com apenas pequeno
gesto de sobrancelhas, ordenou que levantasse.
Ela, muito a contragosto - fazia tudo a contragosto -, se levantou, mas, mesmo em pé parecia, ainda, estar sentada.
Enquanto isso eu já me havia levantado da confortável poltrona onde estivera instalado numa indolência desafiadora e dado dois passos em sua direção. Então saquei a arma e detonei dois tiros certeiros, no peito, um muito próximo do outro. Vi nascer um cravo vermelho em sua blusa branca e ela tombou de cara no chão, a cabeça dependurada para fora do palco.
Keronotov, olhos esbugalhados, mas sem perder a compostura, com uma tristeza imensa na voz, me pergunta:
- Mas por que fez isso?
- Não gostei da atuação - respondi, detonando, nele, dois tiros.
O primeiro no coração, mas ele não o tinha, mirei então o enorme e volumoso abdomem e ouvi um: “sssssssssssssssss”, como de um pneu que esvaziasse. Era seu “ego” se desinflando de mistura com os gazes do corpo que agora empestavam o ambiente. Saquei do bolso um lenço que trouxera para isso, cobri o nariz e disparei novamente, no peito, desta vez atingindo-lhe o coração inexistente. Ele finalmente tombou, vermelho em sua poltrona vermelha.
Micael, o jovem ator presente, durante esses poucos segundos havia se levantado e caído novamente, de susto, sobre algumas cadeiras.
Caminhei em sua direção com o revólver apontado para sua testa.
Ele não disse nada, e creio ter sido isso que o salvou.
- Pum!!! - fiz com a boca.
Ele sorriu. Sorri também e saímos os dois, após haver apanhado o molho
de chaves no bolso de Keronotov.
Chaveei o estúdio por fora e atirei as chaves no meio da rua. Um carro passou sobre elas esparramando-as imprestáveis.
Caminhei alguns passos em direção ao centro da cidade, então, quando
sabia encontrar-me a distância segura, apanhei no bolso o detonador e o acionei.
Ouvi a estrepitosa explosão, mas segui caminhando até a esquina. Só então
me voltei. Pude presenciar o enorme cogumelo se elevando acima dos telhados vizinhos, as pessoas correndo, os escombros despencando sobre elas, Micael sentado à calçada não sei dizer se ria ou se chorava.
Me voltei e segui adiante.
Vários quarteirões à frente, bati as cinzas dos ombros entrei na igreja e
bani para sempre de minha memória as lembranças daquele dia nefasto.

Comentários

  1. Que incomensurável paradoxo parece existir nas mais profundas entranhas do coração (des)apaixonado de tais poetas!!!!! Incomensurável na expressão, não menos que no sentimento!

    O amor e o ódio são faces da mesma moeda

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