peça teatral O BILHETE PREMIADO ou UM DIA DE SORTE Personagens A- arlequim 1 –Eulália 2 –Chico M1- Karla G – Gangster- P – Pai policial D – Santa Efigênia ARLEQUIM – um dia de sorte pode ser apenas um dia comum, igual a qualquer outro. Talvez você tenha tido sorte sem nunca saber que a teve, talvez tenha tido sorte pelo simples fato de não ter tido azar, ou, talvez a sorte esteja justamente em não ter tido sorte. Sorte, segundo o padrão vigente do senso comum pode, muitas vezes, significar muito azar, o que, no final das contas pode ser uma sorte danada. ( Chico e Eulália sentados à beira do palco) 1 – Lembra daquela vez que choveu ? 2 – Lembro . Choveu tanto que os peixes morreram afogados . 2 – (Chora) 1 – (Brusco ) – Que foi ? 2 – Os peixes . 1 – Ora ! Peixes nascem e morrem todos os dias . É igual gente não vale a pena chorar por eles . 2 – Puxa ! Ainda bem . 2 – Que dia é hoje ? 1 – 12 . 2 – Doze ? 1 – 12 . 2 – Doze de outubro ? Minha nossa ! Quase tinha esquecido ( pega suas coisas e sai correndo ) (Desce do palco em direção à platéia ) Tchau ! Fique com Deus . 1 – Você precisa ir mesmo ? 2 – Acho que não . 1 – Então pode ir . Ficarei aqui te esperando . (Sai triste , lenta, cabisbaixa pelo meio de platéia, arrastando uma bolsa ou uma blusa) 1 – Ainda lembra daquela vez ? 2 – (Para olha lentamente , para trás ). 1 – As ondas batiam na praia . 2 – (Volta-se e põe-se a andar novamente ) 1 – Plaft! Plaft! Plaft! (persiste por algum tempo ) (Quando pára ela também pára e se volta ) 2 – Já parou ? 1 – Já ! Pode voltar . 2 – ( Volta , saltitante, feliz ) -- Ai amor que bom que já parou 1 – É mas sempre pode começar a qualquer momento . 2 – Então, enquanto isso, vou preparar uma comida , você quer ? 1 – Não obrigado . 2 – Você prefere uma feijoada bem nutritiva , ou uma macarronada light? 1 – Acho que uma macarronada bem nutritiva está ótimo . 2 – Então por quê você não aproveita prá cortar a grama enquanto eu preparo a comida (olhando para a platéia) o mato tá tomando conta desse quintal (tom de confidência) já hoje quando eu tava saindo , me senti como se centenas de olhos me espionassem do meio desta selva . Confesso que fiquei com medo , eles pareciam tão hostis . 1 – Bobagem . 2 – Senti que queriam me comer . 1 – (Assustado ) É mesmo ? (Olhando a platéia ) Não precisa ter medo . Eles são feios mas não comem criancinhas . (Sai, volta com um rádio ) (Ela cozinha) (Coloca o rádio sobre a mesa, sintonizando-o numa música , fica ouvindo por algum tempo embevecido , toma a mulher pela cintura e põe-se a dançar ) (De repente a música para ) R – Interrompemos esta programação para transmitirmos diretamente da esquina da João Nestor com Desembargador Siqueira , o sorteio acumulado da Loteria Federal . ( 1 procurando nos bolsos) 1 – Mulher não viu onde guardei aquele cartão de loteria ? 2 – Não ! Não vi ! Mas que cabeça hem? 1 – Na cabeça ! (coça a cabeça tira um papel enrolado detrás da orelha) É tava aqui mesmo . R – Atenção ! Já temos conosco o número sorteado ; cartão na mão para conferir , que vamos anunciar ... Está pronto ? 1 – Estou ! R – Posso dizer ? 1 – Pode . R – Então se prepare que lá vai . 2 – Vamos logo com isso , mas que enrolação . R – Já vai ! Já vai ! Mas que gente mais apressada . O número sorteado é 985468 . 1 – Acertei ! 2 – Como acertou ? 1 – Acertei ! Tá aqui ó 985468 . 2 – É estou vendo . Mas foi isso mesmo que ele disse ? Será que você podia repetir ? R – Atenção que iremos repetir o número sorteado . Antes porém vamos a uma mensagem do nosso ... 2 – Repete de uma vez e para de enrolação... R – Tá bem ! Tá bem ! Como eu dizia o número sorteado é ... sob o patrocínio das Lojas Consolação as únicas que ... 2 – (Dando um tapa no rádio ) R – 985468 . 2 – Obrigada . R – De nada ... Como eu ia dizendo querida ouvinte . (desliga) 2 – É você ganhou mesmo .(volta lavar a louça) 1 – É ganhei . 2 – E agora ? O que é que você vai fazer ? 1 – Não sei ! Acho que gastar . Você me ajuda querida ? 2 – Eu não , quem mandou comprar este bilhete , agora se vira neguinho , quis ser ambicioso , se lasque . 1 – Ô mulher ! Quanta maldade . Que custa me dar uma mãozinha numa hora dessas. 2 – Quanto é o prêmio ? 1 – Dois . 2 – Dois mil ? 1 – Dois milhões . 2 – Ah ! Deixa eu ver (olhando o bilhete ) Dois milhões oitocentos e cinqüenta) quase três ... Cara ! Isso vai dar trabalho . Acho que vou ter que ajudar . Deixa eu pegar, aqui, papel e caneta . Toma vai anotando . Uma mercedes . 1 – Uma mercedes ... 2 – Uma ... 1 – Espere ! Não vai dar . 2 – Por quê ? 1 – Onde é que vamos guardar uma mercedes ? Não temos garagem neguinha . Não podemos deixar uma mercedes estacionada aí na rua , não nesse bairro (mostrando a platéia) dá uma olhada na cara dessa vizinhança . 2 – Parece que querem come a gente com o zóio . 1 – São uns morto de fome . 2 – Então esquece a mercedes , vamos comprar um fusca mesmo . 1 – Claro que não ! Assim vamos levar a vida toda prá gastar esse dinheiro . Já pensou ! Hem ! Morrer e deixar essa desgraça pros filhos ? 2 – Deus do céu ! Nem pensar . Melhor... vamos pensar ... Puxa isso já tá me dando uma canseira . Que estresse! 1 – Já sei ! Compramos uma garagem . 2 – Isso ! Isso! (fazem festa) Espere !Mas ninguém vende uma garagem ! 1 – Vende sim, já vi o patrão dizendo , lá no prédio onde eu trabalho , que tinha comprado uma garagem prá guardar o carro novo . 2 – Ô homem ! ! 1 – Sim ! ? 2 – A gente compra garagem em prédio , não num barraco de favela . 1 - É mesmo ? 2 – É . 1 – Então compramos um prédio . 2 – Acho que o dinheiro não dá pra tanto . 1 – Então compramos só a garagem de um prédio . 2 – Será que eles vendem ? 1 – É será que eles vendem ? 2 – Vamos saber já ! (apanha o telefone e disca ) 1 – Prá onde você tá ligando ? 2 – Pro prédio onde você trabalha . 1 – Você tá maluca (desligando o telefone) Quer que eu perca o emprego ? Se eles descobrem que ganhei na loteria tô no olho da rua . Já pensou ? E como é que eu ia chegar de mercedes no serviço . Sabe como essa gente rica é invejosa , iam me demitir só prá me sacanear . 2 – Então vamos ligar prá outro prédio . 1 – Não! Deixa prá lá . Vamos ver se temos outra idéia . (Pensam) Achei ! 2 – Achou ? 1 – Achei a moeda que eu tinha perdido ontem à noite . 2 – Mais serviço . 1 – É mesmo . Melhor jogar fora . (Faz gesto de jogar na platéia, pára ) São uns morte fome mesmo .( tem uma ideia) Escuta ! E se ... (tom de confidência) 2 – Hã ? 1 – Se a gente jogasse fora . 2 – Mas você não pode . É contra as normas . 1 – Que normas ? 2 – Sei lá ! A norma dos normais . Você já viu dizer que alguém tenha jogado fora um bilhete premiado? 1 – É ! Não ! 2 – Então . 1 – E daí ? E se eu quiser ser o primeiro ? 2 – Nem pensar . Nem pensar . Isso de ser o primeiro é pior do que ganhar na loteria. 1 – Por quê ? 2 – Não sei porque , mais é . 1 – Claro que não . 2 – Claro que sim . O primeiro homem que pisou na lua ficou louco . O primeiro a chegar na América morreu pobre e sozinho e sempre teve fama de louco . ( Confidente ) O primeiro só se fode . O segundo , terceiro, quarto , esses é que tiram proveito . 1 – Então esperamos alguém jogar fora primeiro . 2 – E se demorar ? Vão acabar investigando . Imagine você sendo interrogado . (Senta-o em uma cadeira, apanha uma lanterna, põe na sua cara) (baixa a luz) 2 – Vamos confesse . Por quê não descontou o bilhete ? 1 – Porquê ... 2 – Não minta . Fale a verdade . 1 – Mas é a verdade eu ... 2 – Vamos confesse , você queria sonegar o imposto de renda ? 1 – Eu nem pensei em imposto de renda . 2 - Hã ! Hã ! Então admite que ganhou na loteria e nem sequer pensou em pagar o imposto ? 1 - Mas eu não descontei o bilhete . 2 - Só prá não pagar o imposto . Sacana . Sonegador . (desliga a lanterna , volta a luz) 1 – É melhor pensar em outra solução . Já sei ! Vamos vender o bilhete . 2 – Mas quem é que vai querer comprar ? 1 – Eu já ouvi dizer que tem gente que compra bilhete premiado prá lavar dinheiro . 2 – Lavar dinheiro ? 1 – É ! Se por exemplo você tem um dinheirinho mas não pode gastar por que ninguém pode saber que você tem esse dinheiro . 2 – Mas como é que eu vou ter um dinheiro que ninguém pode saber ? 1 – Se você assaltou um banco por exemplo . Ou se você vende droga . 2 – E nós vamos fazer negócio com traficante ? Com assaltante ? 1 – É só um exemplo . Pode ser outra atividade ilegal mas não imoral . 2 – Ilegal e Moral ? 1 – É ! E os cara pagam o dobro do preço, já pensou ? Nós vamos ficar ricos . Ricos (pula feliz ) 2 – (Olhando de braços cruzados ) 1 – Ué você não fica feliz ? 2 – Então você em vez de achar uma solução pro problema , arranja um jeito de duplicar ele . 1 – Puxa é mesmo (sentado, desolado) já sei . Vamos vender pela metade do preço . Assim a gente resolve a metade do problema . 2 - Grande ! Parece que agora você acertou . Mas como é que a gente acha o comprador . 1 – Anunciando no jornal . (Rabisca no papel) Toma, vai lá na banca e pede prá por esse anúncio . 2 – Lá na banca da Dona Flora ? 1 – É ! 2 – ta maluco! Depois o bairro inteiro vai saber que você ganhou na loteria . 1 – Diga que é só uma brincadeira . 2 – Não . O melhor é eu ir lá do outro lado da cidade . E ainda por cima disfarçada (Apanha um chapéu, óculos escuros e capa, sai ) . 1 – (Sentado , pensativo, contando nos dedos ) Ainda sobra um milhão , quatrocentos e poco . Um milhão e quatrocentos mil reais ( entra uma mulher vestida de maneira provocante, ouve) como é que vou fazer prá gastar essa grana toda ? M 1 – Falando sozinho seu Francisco ? 1 – (assustado) Oi ! Carlinha ! Nossa que susto que você me deu (olhando suas pernas) M1 – Será que eu sou assim tão assustadora ? 1 – Claro ! Quer dizer, claro que não . Você não assusta nada não, nem um pouquinho . Muito pelo contrário, quando vejo a senhora eu me sinto muito, muito corajoso, capaz de fazer qualquer loucura . M1 – Por falar em loucura, o que é que você tava resmungando aí sozinho ? 1 – Nada não , tava só pensando alto . M1 – Pois eu ouvi um pouco desse teu pensamento . 1 – Coisa feia ; ficar ouvindo o pensamento dos outros . M1 – Pois me pareceu ser um pensamento muito bonito . Já pensou o que a gente podia fazer juntos ? Nós três ? 1 – Nós três ? Você , eu e minha mulher ? M1 – Não seu bobinho . Eu, você e esse seu pensamento bonito . 1 – Hã ! M1 – Então ? Que tal ? 1 – Não , não vai dar ele já foi embora. (Apanhando o bilhete de cima da mesa). M1 – Será que já foi mesmo ? ou tá aí na tua mão ? 1 – Não, não tá , pode ver . M1 – Então mostra a outra . Agora as duas juntas . 1 – (Coloca o bilhete atrás das calças) M1 – Vire-se de costas . 1 – (Apanha o bilhete e se vira ) M1 – Mostra as mãos de novo . 1 – (Coloca o bilhete na boca , se afoga , retira e coloca no saco) M1 – Se vira (percebendo que ele tinha posto na boca) Abra a boca e fecha os olhos . 1 – Não . M2 – Abre ! (ameaçando com a lanterna ) 1 – (abre a boca ) M2 – (Ilumina a boca com a lanterna, examina ) Nossa você tá precisando de um dentista . 1 – Isso ! Um dentista ! Como é que não pensei nisso antes ? M1 – Cala a boca , onde é que pôis ? 1 – Quem ? O dentista ? M1 – (Olhando para onde ele guardou o bilhete ) Vamos ver se eu adivinho o que é que você têm aí ? 1 – Epa ! Pára com isso . M1- Vem cá meu benzinho . Venha aqui não adianta querer fugir (enfia a mão em suas calças e começa a procurar ) M1 – Onde é que você pois ? Há ! Há ! Encontrei (puxa ) 1 – Ai ! M1 – ( Puxa novamente) 1 – Ai ! (com prazer) M1 – (Dá-lhe um tapa ) Seu indecente , tá pensando o que de mim ? 1 – Nada ! Não tava pensando nada, é ele que pensa por si só . M1 – Pois venha aqui que eu ainda não acabei . (Vira-o de costas para o público ele vê a esposa entrando ) (ela chega por trás de M1 ) M1 – Ah ! Achei ! Tá bem aqui na minha mão . O danado é pequeno mas não me escapa . 2 – É pequeno mas é meu, sua sem vergonha . M1 – (Assustando-se, vira-se de frente para 2 encostando-se em 1 o qual estampa um sorriso satisfeito ) Oi ! minha amiga ! Ainda bem que você chegou , eu tava aqui dando uma mãozinha pro seu Chiquinho . 2 - Mãozinha ! Chiquinho ! Parece que de repente tudo ficou piquinininho . (Tirando M da frente de 1 olhando sua braguilha ) M1 – Não é nada disso que você está pensando . Eu sou moça direita ouviu ? E não admito que pensem mal de mim desta maneira . Só estava querendo ajudar o Chiquinho, quer dizer o Seu Francisco . Mas agora você me ofendeu viu ! Eu vou embora . E não volto nunca mais . (Mostrando um cartão a 1 ) A não ser que você me chame . Aqui está o meu telefone . (coloca dentro de suas calças.Sai) (pausa 1 e 2 se olhando, ela acusadora ele tentando enfrentar seu olhar mas demonstrando vergonha) 1 – Pôs o anúncio ? 2 – Claro ! Quando eu vou fazer uma coisa , é exatamente aquilo que eu faço . Não sou como certas pessoas . (toca o telefone, se olham ) 2 – Deve ser . 1 – O anúncio . 2 – Atenda . 1 – Não atenda você . 2 – Atenda você (ordenando) 1 – Alo ... tá, ela está sim . É prá você . 2 – Alo ... Bilhete ? Anúncio ? ( 1 rindo em silêncio) ( 2 faz gesto com punho fechado ) 2 – É ! É aqui mesmo , a gente quer vender sim . Pela metade do preço ... É rua da Conceição nº 404 ... quatro quadras depois do ponto final do Conceição ... isso ... pergunte pelo Chico da Eulália ... Quinze minutos ... tá ... tá bem ... (Segura o telefone no ar ) Ele tá vindo ! Com dinheiro vivo . 1 - Ai Meu Deus ! E se for um bandido . 2 – Com certeza que é . Quem mais compraria um bilhete ? ( Batem na porta ) 1 – É ele ! Atenda . 2 – Atenda você covardão . Afinal quem é o homem da casa ? 1 – Você . 2 – Deixa de história e vai atender essa porta de uma vez . Antes que ele desista e vá embora . 1 – Será que ele vai ? 2 – Claro ! Vamos ! Atenda . 1 – Já tô indo . Será que ele seria capaz de ir embora mesmo ? 2 – Vai de uma vez seu ... 1 – Já vou ... ! Já vou ! (Entra uma bela mulher . Dirige-se a 2 , passando indiferente por 1 que permanece parado boquiaberto ) . G – Sou secretária do Sr. Mc. Money . Ele pediu para que eu viesse executar o negócio . 2 – Negócio ! (chamando o Chico ) Quer dizer . Amor ! Venha que você vai ser executado (1 fazendo gesto negativo ) . (2 fazendo gestos para que ele venha ) . (Finalmente se aproxima, tímido ressabiado ) G – (Abre uma pasta sobre a mesa ) Aqui está , conforme o combinado , podem conferir , eu espero . (Puxa uma cadeira, senta-se ) . 1 e 2 – (Olham o dinheiro, apanham algumas notas , examinam-nas . G – (Começa a procurar em sua bolsa alguma coisa , vai retirando vários objetos de dentro dela , esparrama estupidamente tudo sobre a mesa , várias armas e instrumentos de sadomasoquismo . Apanha um revólver .) Ah ! Então você está aqui ? ( apontando para 1 ) 1 – Não, sou apenas uma miragem . G – (Falando com o revólver) Onde é que você estava, seu danadinho , ontem precisava de você e não te encontrei . Não faça mais isso com a mamãe, viu ! (procurando novamente ) Ah ! Aqui está ( apanha um pequeno espelho e batom , põe-se a maquiar . Percebe os dois olhando-a) Já terminaram ? 2 – Não ! 1 – Sim ! 2 – Sim ? 1 – Não ! G – Sim ou não ? 1 – Sim e não . Quer dizer , ainda não contamos, mas não precisa , confiamos na senhora . G – Nada disso . Meu patrão é muito exigente e não aceita reclamações posteriores , portanto confiram , dinheiro foi feito pra contar . 2 – E eu que pensava que era pra gastar . (Começam a contar , vai diminuindo a luz, até a escuridão . Batidas na porta . Acende a luz . 1 e 2 olham-se assustados . M2 apanha o revólver, esconde-se atrás do sofá e ordena a 1 ) G – Atenda!. 1 – (Hesitante) G – Vamos atenda que eu te cubro . 1 – Será que não dava pra senhora cobrir primeiro? (cobrindo-se com o pano do sofá). 2 - Minha Santa Efigênia , pode deixar que eu mesma atendo . 1 – Isso atenda que eu me cubro . (Se cobre com um pano, ele e a bandida ) . 2 – Ah ! é você ! M1 – (Entrando ) . O seu Francisco está ? 2 – Não ! Não está não senhora . M1 – E ... será que ele demora ? 2 – Demora sim . M1 – Ah ! Então eu espero . Não tenho pressa mesmo . ( vai sentar-se à mesa ) 2 – Não, você não pode esperar . M1 – (Percebe o dinheiro ) E por que não ? (Apanha o dinheiro ) Eu não tenho pressa nenhuma . Aliás , acho que nunca mais terei pressa na minha vida . G – (Surgindo com a arma na mão ) . Vai tirando esta patinha daí ! M1 – (Assustada ) Ai ! (Escondendo-se atrás de 2 ) Mas o que significa isso ? G – Significa que você é muito xereta e a curiosidade matou a gata . M1 – Mas eu não vi nada , não sei de nada . E já tava de saída . Tchauzinho ! Manda um beijo pro Chiquinho .. G-(faz gesto de retê-la mas desiste, com desdém) Vai! Vai! Pronto o dinheiro já foi conferido agora passa pra cá o bilhete. 2 – Chico passa o bilhete pra moça... 1 – Bilhete? Há! Só um minuto. (vai a beira do palco procura o bilhete mas percebe que a Carla levou ele) A danada levou o bilhete. G – Como assim levou? Então trate de ir buscá-lo enquanto eu fico aqui com a sua mulher como refém. E trate de não fazer nenhuma gracinha se não... ( faz gesto de cortar pescoço) 1 – Calma não se preocupe querida, eu já volto. Confie na minha eficiência. 2 – Ai meu Deus do céu... tô perdida... G – Espero que este seu marido não demore . Este ambiente de pobreza me deixa deprimida 2 – E o dinheiro ? Faz você se sentir melhor ? G – O dinheiro ? Não ! (indecisa). 2 – E por que esta sua profissão ? G – O que é que tem a minha profissão ? 2 – Você é uma ... uma ... G – Uma ? 2 – Uma bandida . G – ( assustada) Eu ? Credo minha amiga de onde você tirou uma coisa dessas ? 2 – É que você anda com essa arma na bolsa e se veste dessa maneira estranha . G – Minha amiga . Eu sou uma secretária executiva . Faço meu trabalho , como qualquer outra pessoa 2- O que você busca é o poder como uma maneira de fugir de você mesma e do vazio existencial. G- Eu? (sem entender). Eu não fujo de nada. Não tenho medo do perigo. Pelo contrário vou atrás dele. Sempre me dão os serviços mais perigosos, pois sabem que nada me assusta 2 -Sentimento de autodestruição G -Autodestruição? 2 -Quando reprimimos nossa consciência por muito tempo, criamos um inferno pessoal, acionamos um sistema de auto punição e acabamos nos tornando demônios de nós mesmos. G- Inferno. Demônio. Que papo mais pesado. 2 -Então deite aqui e relaxe. Vamos tentar chegar ao começo disso. Me diga, por exemplo, como éra com seu pai? Vocês se davam bem? G - Muito bem. Eu adorava ele. 2 -Senti alguma dúvida nesta tua resposta. G -Não vamos meter meu pai nesta história, tá legal? Se eu tiver um desvio de comportamento não será por culpa dele, sempre nos demos muito bem; ele sempre foi uma pessoa maravilhosa.....até aquele dia..... 2 -Aquele dia? E o que aconteceu neste dia? G -Estávamos passeando naquele maldito parque de diversões....eu estava tão feliz, tinha acabado de sair da roda gigante e comia um algodão doce quando tudo começou.... eu não quero mais falar nisso. 2 – Vamos ! Confiem em mim . G- Então aconteceu o incêndio ... as pessoas corriam desesperadas . Meu pai era policial , não sei se te contei ? Todos corriam em direção à saída, meu pai me colocou no alto de uma escada de onde vi uma velhinha sendo esmagada pela multidão . Gritei pro meu pai e ele foi tentar salvá ela , mas ninguém obedecia . Então ele sacou a arma e deu um tiro para cima, não adiantou nada . Nesse momento um homem gordo , enorme , avança em sua direção . Meu pai atira no homem e ele abre os olhos de uma maneira que parecem saltar prá fora do rosto . O gordo bota a mão no peito e a retira cheia de sangue . Avança cambaleando na direção do meu pai e ele atira mais uma vez e mais uma vez e outra e outra, continuou atirando até descarregar o revólver . Então o homem se abraça a ele e os dois caem no chão, o gordo por cima, foi isso que salvou ele de ser pisoteado . Lembro que senti uma raiva, um ódio impotente contra aquelas pessoas que mais pareciam animais . Acho que a partir desse momento passei a detestar todo mundo, inclusive meu pai , por ser policial e não bombeiro como ele sempre quis , desde que era criancinha . 2 – Eureka ! G – Quem ? 2 – Achei ! Está resolvido o enigma . Você se uniu aos marginais apenas para ser contra o teu pai . (entram 1 e M1 ) M1 – Me solta seu Chico ! Mas que homem ! Quando é pra agarrar ele larga . Quando é pra largar ele segura . 2 – Aqui está ela . Peguei-a com a boca na botija , na fila do caixa, quando ia descontar o bilhete . G – E onde está o bilhete ? 1 – Isso eu não sei . G – Como não sabe ? 1 – Ela guardou em algum lugar . Só que não sei onde . 2 – Mas você não viu ela guardar ? 1 – Não ! Quer dizer , vi , mais ou menos . Só sei que tá com ela , mas não sei onde . G – Diga de uma vez , sua sirigaita , onde é que você pôs este bilhete . M1 – Não vou dizer coisa nenhuma . G – Diga de uma vez . 1 – ( levando-a a parte ) Ô mulher , fala logo , ou ela vai acabar te matando . M1 – Você quer saber aonde tá ? Tá aqui ó . ( mostrando dentro da calcinha ) Foi você quem me deu a idéia . 1 – Então passa logo prá cá e vamos resolver isso de uma vez . M1 – Eu dou . Mas você é que tem que pegar . 1 – Você tá maluca ? Aqui na frente dessa gente toda? (mostrando o público) M1 – Se você não pegar eu não dou . G – Vocês dois aí já acabaram ? 2 – É! não estou gostando nem um pouco deste lero lero particular . M1 – Já acabamos . Eu só estava contando um segredinho aí pro Chico . Agora ele sabe o que tem que fazer . Cabe a ele decidir se faz ou não . G – Pois eu estou louquinha prá fazer alguma coisa . Passa logo esse bilhete . M1 – Só se o Chico vier pegar . (ao Chico) G – Vamos ! Pegue o bilhete ! 1 – Eu ... Eu ... G – Vamos ... De uma vez . 1 – (Puxa a calça de M1 e sem olhar vai colocar a mão) Eu não posso . Não consigo . G – Pois vamos ver se depois que ela estiver morta você perde esse medo . Faça sua oração , sua teimosa , que eu vou te mandar prá terra dos pés juntos . M1 – Ai ! Minha santa Efigênia , me acuda ( som de explosão, congela a cena) Entra uma mulher vestida com uma bata branca curta, um coldre com pequenas flechas preso à cintura , um arco à mão , sandálias de tiras trançadas à perna, ou como uma espécie de Carmen Miranda) ( Fala da Deusa Efigênia) D – O medo é o sentimento unificador de todos os seres vivos . Através do medo os homens obtiveram a obediência dos animais e este mesmo sentimento é , ou foi , usado pelos deuses a fim de fazer com que os homens cumpram sua vontade . Somente quando o amor sobrepuja o medo é que o humano se aproxima do divino . Neste momento ele é compreendido pelos anjos e santos e tudo que pedir será atendido . Vamos ! Peça minha filha , pois embora manifesto de maneira equívoca , o móvel de tuas ações é o mais puro e primitivo amor . Vamos peça ! M1 – (Como que despertando , olha duas vezes para ambos os lados ) Eu não quero morrer . D – Muito bem , está bem . Você não vai morrer , mas agora volte pro seu lugar que vamos continuar a cena . M1 – Dona Efigênia ! D – O que é ? M1 – Já que você fez uma viagem tão longa do céu até aqui; será que eu não podia aproveitar prá fazer mais um pedido ? D – Claro ! Peça ! Se eu puder atenderei . M1 – Eu quero ficar com o Chiquinho . D – Mas e a Eulália ? M1 – Olha eu tenho uma idéia prá todo mundo ficar satisfeito . Eu devolvo o bilhete prá bandida . Dou o dinheiro prá Eulália . E fico com o Chico prá mim . D – É pode ser uma boa idéia . Assim todo mundo sai ganhando . M1 – Não é verdade ? D - ... Exceto o Chico . M1 – Como assim ? Você acha que ele sai perdendo com a troca ? D – É isso mesmo ! Ele não ganha nada , apenas faz uma troca, e tenho lá minha dúvidas se é um bom negócio . M1 – Puxa ! Não precisava ofender né . D – A não ser que ... M1- Que o quê ? D – Que o Chico ficasse com as duas . M1 – Por mim tudo bem ... mas acho que a Eulália não vai topar não . D – Vai topar sim! Basta nós invertermos os papéis que ela vai achar que saiu ganhando . Penso até que ela vai achar a idéia ótima .Agora volte pro seu lugar que a ajuda que eu pedi já está chegando . (BATIDAS NA PORTA) P – Abram ! É a polícia ! G – Eu nunca deixo um serviço pela metade . Já terminou tua oração ? 1 – Espere ! (Se coloca à frente de M1 ) (tiro acerta o Chico) (D que havia enchido uma bexiga enquanto se desenrolava a cena, fá-la explodir como estampido do disparo) G – (Se volta, afasta-se lentamente da cena, para, com a arma pendente , chocada por ter matado o Chico) (ENTRA O POLICIAL) (lentamente, sonoplastia, acende um cigarro, da várias tragadas, joga, pisa, saca arma) P – Largue esta arma sua bandida . G – (Se vira com a arma apontada pro policial ) Não vou largar coisa nenhuma. (nova bexiga a qual é inflada pela santa enquanto se desenrola a cena) (Atira no policial) Pai ! Pai é você ? ! P – Filha ! ? G – Pai ! (Tomando a cabeça do policial em seu colo ) Pai ! Por favor não morra. Se você não morrer eu prometo que vou mudar de vida . P - Eu também gostaria muito de poder levar outra vida. Sempre detestei ser policial . G – Acho que eu também o que queria sendo bandida, era ser caçada por você . A idéia de que meu pai andava atrás de mim fazia com que tudo parecesse um jogo , uma brincadeira de pega pega . P – Mas agora a brincadeira acabou . Existe um morto e eu também to morrendo . Reze. Reze para que possamos estar juntos , no céu . Adeus minha filha ! Saiba que eu sempre te amei muito . (Desfalece) G – Meu Deus do céu ! Minha Nossa Senhora ! Minha Santa Efigênia ! Por favor, não deixe meu pai morrer e eu prometo que vou mudar de vida . D – Mas que barbaridade . Esse negócio era pra ser uma comédia e já está virando uma novela mexicana . É melhor eu dar um jeito nisso. (joga um pouco de purpurina sobre o policial ) Mas você precisa prometer, menina, que vai achar um emprego decente . G – Eu prometo, que ... se meu pai viver vou encontrar um trabalho decente e honrado . D – Muito bem minha filha . G – Vou ser funcionária da prefeitura . P – (Que havia dado sinais de vida , volta a desfalecer ). D – Puxa ! Estragou tudo . G – Não ! Eu vou ser freira . D – Também não precisa exagerar , né ! G – Melhor então . Vou ser bombeira . Junto com meu pai . Seremos dois heróis . Salvaremos muitas vidas, e esta será uma maneira de compensar os meus crimes . D – É ! Aí tá razoável . Dá pra ser . Que seja ! (sonopalastia) (D ajuda policial a se levantar , este e G auxiliam Eulália e Carla a retirarem Chico de cena . Efigênia acompanha-os até próximo a saída derramando purpurina sobre Chico , quando a comitiva sai Efigenia dirige-se a outra saída percebe então o dinheiro sobre a mesa , volta, coloca algumas notas no coldre, no sutiã , vai saindo , volta novamente apanha mais algumas notas , sai) Black-out caindo lentamente . (sonopalstia – “há você está vendo só, do jeito que eu fiquei e que tudo ficou... uma tristeza tão grande nas coisas mais simples que você tocou, a nossa casa querida já estava acostumada guardando você as flores na janela sorriam cantavam por causa de você...” Entra Eulália, de luto, em passos lentos, com ar melancólico, romântica ; passa a mão sobre os móveis, denunciando a saudade que sente do Chico. Entra Carla, de maneira espalhafatosa . M1 – Eulália ! (Gritando muito alto , assustando Eulália , tirando-a bruscamente, de suas meditações ) 2 – (desligando o rádio, sem empolgação) Oi Carla! Que susto ! Quer dizer, que surpresa ! ha quanto tempo você não aparece . Quais são as novidades ? M1 – Quais não . Qual . A novidade é uma surpresa muito linda, espere um pouco , já vou te mostrar . (Sai) 2 – (Senta-se com ar melancólico ) M1 – Aqui está , minha novidade, Eulália. Te apresento, meu noivo . 2 – (Espantada , chocada , música romântica) (Chico muito elegante) Noivo -- Prazer em conhecê-la , linda senhora . 2 – Muito ... muito prazer ... M1 – Meu querido, agora que já deu tanto prazer a nossa amiga , que tal ir cuidar da compra daquela Mercedes . Noivo – Já estou indo querida. Encantado em conhecê-la. Espero que nos encontremos muito em breve (beijando sua mão) 2 – (fica olhando estonteada ) Mas ... Mas ... é o Chico . M1 – Ele não é uma gracinha ? Olha, amiga eu vim aqui por que estou muito preocupada . Você não pode ficar aí nessa melancolia . Você ainda é tão jovem, tão bonita . Tão rica, com todo aquele dinheiro da venda do bilhete . Na verdade você tem muita sorte . 2 – Não ! Quem tem sorte é você Carla . No final acabou ficando com o bilhete e ainda encontra esse namorado tão bonito . M1 – Esse e muitos mais . Você não imagina o quanto os homens gostam de dinheiro . E depois dizem que as mulheres é que são interesseiras . 2 – Pois eu perdi o interesse por tudo, pelos homens , pelo dinheiro e até pela vida . Depois que perdi o Chico nada mais tem gosto , a única coisa que me agrada é ficar aqui lembrando do meu marido . M1 – Mas este teu sentimento mórbido não vai te levar a nada , minha amiga . 2 – Não sei como você tem coragem de me tratar como amiga, Carla Você foi a responsável pela morte do Chico , acabou levando o bilhete premiado e ainda por cima me aparece com esse noivo que é a cara do falecido. M1 – Sorte mesmo minha amiga . Tudo sorte . Mas pra te provar o quanto sou tua amiga quero te propor um negócio. 2 – Não quero negócio nenhum com você Carla . M1 – Ouça primeiro . Você sabe que comprei uma cobertura chiquérrima naquele bairro ainda mais chique . 2 – Sei . M1 – Então . 2 – Então ? M1 – Então que eu quero que você passe uns tempos lá enquanto eu fico na sua casa. 2 – Tá maluca ! Você não vai acostumar no subúrbio , e eu não quero acostumar no luxo .Prefiro continuar sendo o que sempre fui . Quero ficar aqui com as lembranças do meu Chico. M1 – Nada disso ! Ninguém vive de lembranças . Temos que estar constantemente fabricando novas recordações , ou seremos velhinhas desmemoriadas quando a idade chegar . Então por que alguns velhinhos perdem a memória ? É por que têm muito pouco que lembrar . 2 – Não vai dar certo . M1 – Vai dar certo sim . Vamos amiga , você vai gostar e se não gostar , você volta para cá e eu volto para lá , sem ressentimentos . Tá ! ? 2 – Não sei ... M1 – Vamos ! Sabe sim . Quem pensa demais acaba perdendo o bonde. (Saem) (Entra N (Chico noivo), senta na beira do palco logo a seguir entra Carla , senta a seu lado , repetem a cena de início da peça ) ... Plaft ! Plaft ! Plaft ... (Segue fazendo este som até que Carla saia pela platéia) , quando para entra Eulália ) 2 – Já acabou ? 1 – Já ... 2 – Puxa ! Que bom que acabou . 1 – É mas sempre pode começar novamente . (Se aproxima como se fosse beijá-la ) 2 – Você que eu prepare uma comida ? 1 – Não obrigado . 2 – Você prefere uma feijoada bem nutritiva ou uma macarronada bem light ? 1 – Pode ser ... (olhar apaixonado) Pode ser ... ( aproximando-se lentamente para um beijo enquanto a luz vai abaixando , quando estão quase se beijando entra Carla ) (Sobe a luz rapidamente ) M1 – Uma feijoada bem nutritiva ! (com uma panela na mão) Vejam o que eu trouxe para o nosso jantar . Vamos comer ! ? ( Levantam-se , todos muitos alegres, Chico conduzindo Eulália pela mão, sentam à mesa para comer , uma a cada lado dele . Comem um pouco de chocolate sujando a boca, olham-se felizes e apaixonados , Chico beija uma e outra depois as duas o beijam no rosto ao mesmo tempo , uma de cada lado ) (Black-out) FIM José Vilseki 17/01/02

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