CONSUMISMO
- Querida! Outra vez! –
disse o marido , complacente, à exuberância loira que acabara de entrar, feliz e estapafúrdia, pela ampla e confortável sala onde estava sentado diante do lep top e um mundo
novo demais para que ele o pudesse decifrar.
Ela
apenas se postou a sua frente. Sem nada dizer olhava-o por sobre os óculos
escuros, enormes, tão grandes quanto o preço que custaram, com as sacolas da
mais diferentes grifes dependuradas nos braços e ombros, parecendo uma árvore
de natal suntuosamente enfeitada.
- Você
podia se dedicar a alguma coisa mais nobre de vez em quando, ao invés de
simplesmente ir ao Shopping gastar.
Ela
continuou parada, sem se mover, na mesma atitude, parecendo uma deusa do
consumo que se houvesse personificado à sua frente e agora condescendesse em
deixar-se adorar por breves momentos.
Embora a
visão daquela beleza bem vestida, bem cuidada, bem penteada e maquiada,
rescendendo ao que havia de melhor na indústria dos alquimistas franceses, já o
houvesse arrebatado do mundo insípido onde tentava se agarrar com quase
desespero, continuou.
- Por
que não fica em casa lendo? Pode ter todos os livros que quiser. Se tiver frio,
sente-se em frente à lareira bebendo um chocolate quente ou sei lá o que, se
tiver calor fique em frente à piscina e quando tiver sede chame a Margarete prá
te levar um suco refrescante qualquer, prá que essa necessidade de sair
poraí e se estafar no trânsito, caminhar
horas por estacionamentos infinitamente grandes com esses sapatos tão delicados
na aparência mas que são verdadeiras máquinas de tortura...
- Tem razão querido! – disse ela finalmente
desabando na poltrona que afundou a seu peso - embora pesasse tão pouco -, os pacotes e sacolas se
espalhando ao seu redor. – Tem razão meu amor! – completou, e sua voz era doce
e melodiosa enquanto tirava o sapato estendendo a ele o pesinho delicadinho
onde se viam agora pequenas manchas vermelhas que tão perigosamente prometiam
transformar-se em calos. – Mas que posso fazer? É meu destino, não posso fugir a ele – emendou
enquanto, com a ponta do dedo do delicado
pezinho - de onde se desprendia leve aroma compurscante de chulé se
evolando de mistura a uma névoazinha inebriante de perfume caro e odor de
pessoa asseada e limpa - tocava-lhe a ponta do nariz.
Ele,
enquanto lhe massageava o pezinho olhava a beleza seráfica desabada a sua
frente.E era sua, como uma propriedade que houvesse comprado, ou um cavalo puro
sangue, mas, propriedades e cavalos podiam ser vendidos. Esposas não. Que idéia
era essa de falar em destino. Que papo era esse de estoicismo e aceitação ao
destino? Ele, embora estivesse sempre incitando-a a ler ou adquirir algum gosto
pelas coisas do espírito, no fundo, o que mais admirava nela era justamente
essa falta de conteúdo, essa embalagem maravilhosamente rica e linda contendo
coisa nenhuma.
- Como
assim teu destino?
- É isso! – disse fazendo um
muchocho e um biquinho com os lábios deliciosos. - Meu destino é ser linda e
enfeitar um pouco esse mundo tão transbordante de coisas horrendas. É uma
missão santa, penso eu, tão difícil quanto a dos mártires. Penso ainda que a única maneira
digna de o ser humano fugir à depressão seja consumindo, comprando tudo que se
puder comprar, seja aquilo que compramos útil ou não, necessário ou não. Que
vale algo se vale somente pela utilidade? Se víssemos assim, que valor teria a
arte. Somos animais humanos querido. Você mesmo por que quer uma fêmea como eu
a seu lado? Trinta anos mais jovem? Somente para afirmar a tua potência de
macho dominante. E está certo. Esta é a natureza humana e não devemos
contrariá-la. Não entendo por que esses jovens engajados vêm algo de missão
divina naquilo que fazem, alegando com
tanta ênfase serem defensores da natureza e do que é natural se agem e pregam a
anti natureza. O natural do humano é o consumismo e por isso somos felizes
quando consumimos. O sistema mais natural do ser humano é o capitalismo
selvagem já que não passamos de animais tecnologicamente evoluídos. A depressão
e o desespero vêm de não se poder
consumir o suficiente para atingir a beatitude e o nirvana que só é acessível
àquele que pode consumir sem limites. Poucos são os eleitos, e nós que o somos
devemos fazer jus a isso. Alguns, traidores, buscam na religião, na filosofia,
nas congecturas e elucubrações mentais, na meditação, na yoga, na natureza,
participando de ONGs, como voluntários em projetos sociais, aquilo que somente no ápice da criação humana
podemos encontrar.
- E onde seria este ápice
minha surpreendente deusa da sabedoria? – disse o marido olhando-a por sobre os
óculos Armani de leitura.
- Onde!? – disse ela
olhando-o com ar condescendente. – Ora
onde mais poderia ser?
- É! Onde?
- No Shoping Center é claro.
Veja meu querido rei da selva, não existe nada mais degradante do que esses
programas sociais que pretendem tirar o pobre da sua pobreza. Se tirarmos deles
a pobreza que lhes restará? Uma casinha no subúrbio a ser paga com trezentos
anos de escravidão e um carrinho na garagem que lhe custa a fortuna da sua
liberdade perdida.
- Mas que liberdade perdida
minha Deusa da perdição?
- A liberdade da cultura.
- Cultura? Que cultura tem esse povo, sem acesso a nada?
- A cultura do boteco, do bilhar o direito a ficar
desempregado quando quiser, de chegar em casa e dar uns tapas na mulher, de
falar do seu subúrbio da policia e dos bandidos nas letras das músicas e cantar
a beleza efêmera das bundas e peitos das meninas. Tiram isso dele e o que lhe
dão em troca? Feijão e arroz na mesa, carnê das Casas Bahia e a degradação
aprisionante num bairro de fim de mundo numa casinha de carimbo, sem nem
quintal, nem sabiá, nem laranjeira. Que vale este governo tão cultuado tirar o
povo daquilo que levou séculos para construir para dar-lhes isso em troca? Se
não pode lhes dar carro de luxo, roupas boas e caras, piscina, casas dignas e,
principalmente, beleza, então deixe-o onde está que está bem melhor. Mas agora
chega desse papo cabeça. Venha querido! Vamos tomas um banho odorífico em nossa
piscina interna e depois quero te mostra o mapa do paraíso – disse ela
deslizando a unha perfeita pela perna perfeita enquanto mordia, com dentes de
alva perfeição, delicada sacola onde, podia-se adivinhar, havia delicado
lingerie.
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