PLAZA VACIA

Extático, o menino contemplava o cartaz onde a bailarina, com ampla saia vermelha, qual capa de toureiro voejando em torno de si, olhava-o do fundo da negrura insondável dos seus olhos de cigana.
“Hoje a noite, no teatro de Sanlucar!” – lê, em voz quase alta o ciganinho apaixonado, dá um suspiro involuntário e, envergonhado de que alguém o pudesse estar vendo, assim, suspirando em frente a um cartaz, volta-se para todos os lados, mas, como sempre, não havia ninguém.
Podia ouvir, no fundo de sua mente, o cantor flamenco em seu cantar desesperado, a sincope das palmas eletrizantes, o ritmo impregnando a atmosfera de uma sensualidade tão bruta e reprimida que a tornava quase irrespirável.
Os cabelos tolhidos no alto da cabeça; o queixo erguido, os quadris um pouco jogados à frente, uma das mãos segurando a saia, a outra pendente, muito elevada acima da cabeça, empunhando a castanhola, a bailarina, de cintura delgadíssima, seios fartos, orgulhosos, como orgulhosa era toda sua figura prisioneira, estampada sob o letreiro anunciador, a bailarina magnetizava o garoto com a negra profundidade do seu olhar.

Sonhava com ela constantemente, quer dormindo, quer acordado.
Seu pai, metido sempre em uma nuvem etílica, várias vezes lhe desferia sopapos e impropérios, exacerbado pelo alheamento em que mergulhara o menino.
- Hoje no teatro de Sanlucar. - leu novamente, outra e mais outra vez e, finalmente, volvendo a sua realidade imediata e a tarefa que seu pai lhe havia dado, se põem a andar decidido ladeira acima, em direção ao "mercadillo" onde deveria fazer compras.
“Um quilo de azeitonas, um litro de óleo, batatas...” Trazia à mente a lista
das mercadorias e ia repetindo para não esquecê-las. Estas, porém, mesclavam-se aos acordes insistentes e insinuantes a se infiltrarem em sua cabeça, como se esta fosse uma caverna vazia onde qualquer som, ou idéia, ficasse ecoando indefinidamente, pelo tempo que lhe aprouvesse.
Chegando ao "mercadillo" deparou com uma praça vazia.
"Cheguei tarde! Estou frito, meu pai vai me romper a cabeça" pensava consigo.
Logo, porém, deduziu não ser em função ao adiantado da hora que não
havia sinal de feira, o que intrigava realmente era não haver qualquer sinal de que ela houvesse existido..
"Se houve mercado, onde estão os vestígios dele?"
Lembrou de outras vezes em que passara pela praça, após a feira; a quantidade de dejetos amontoados a algum canto, ou rolando pelas ruas adjacentes levados pelo vento quente vindo da África com seu bafo de fornalha.
Agora, pelo contrário, a praça estava impecavelmente limpa. Mais limpa que o normal de seu cotidiano, como se tivesse sido limpa e depois não mais usada.
Penetrou-a por uma de suas veredas - em sua mente soavam as palmas e os acordes de uma guitarra -, percorrendo-a em todos seus quadrantes.
Nem uma loja aberta ou qualquer vestígio de que houvesse alguém por perto.
"Teria ouvido um grito?"
Com os ouvidos atentos gira, lentamente, em torno de si.
Outra vez o grito. Profundo. Gutural. Desta vez reconhece o cantor flamenco e, de pronto, se põe a cantarolar marcando o compasso com as mãos. Logo, porém, se apercebe da cena e, novamente, envergonhado, põe-se a olhar em redor, na esperança de que a praça continuasse vazia.

Eu havia caminhado quase a manhã toda por aquelas ruas desertas, saboreando a quietude e a atmosfera impregnada de história. Parecia-me estranho não haver encontrado ninguém até então, mas, como não conhecia, ainda, os costumes locais, caminhava sempre à espera de deparar com um "café" onde pudesse fazer meu desjejum e obter alguma informação sobre o inusitado de haverem desaparecido as pessoas. Quando, dobrando uma esquina, deparei com uma praça, tão vazia quanto tudo o mais, no centro da qual um menino cantarolava e batia palmas com olhar extático preso a um cartaz. Lembro que pensei ser a cena por demais exótica, mesmo para um país tão dado ao exotismo como este.
Ele não me viu, pois me encontrava semi-oculto detrás de umas folhagens à entrada de um restaurante.
Recuo, ainda, um pouco mais em minha atitude de "voyer", tão de minha natureza, e quedo à espera do desenrolar dos acontecimentos.
“Hoje na praça de Sanlucar !” vejo-o dizer, mais lendo em seus lábios do que
ouvindo-o falar; depois, parecendo pressentir minha presença, olha para os lados e se precipita, numa carreira, para fora da praça, desaparecendo por uma das escuras vielas laterais. Me aproximo de onde estava o garoto no intuito de ver o que trazia o cartaz.
Já muitas vezes havia presenciado o mesmo anunciando corridas e shows em
outras cidades, nunca antes porém detivera-me a examinar mais detalhadamente qualquer deles. O olhar da bailarina atingiu-me como um raio.
"Irei vê-la minha pequena cigana dançarina; pode estar certa disso."

Um mar de chapéus estendia-se à minha frente quando cheguei à praça onde estava o teatro. Pensei ser impossível encontrar um lugar confortável com tanta gente assim, mas, logo a praça foi se esvaziando; estranhamente, pois era evidente estarem todos ali em função do espetáculo, e agora, antes mesmo que o teatro abrisse suas portas, todos vão se retirando.
Eu, que havia sentado a um dos "cafés" observando de longe o movimento, sinto-me intrigado vendo a praça esvaziando. Quando um garçom se aproxima pergunto-lhe se sabe explicar o por quê de as pessoas estarem indo embora.
- É por que o espetáculo foi cancelado.
- Cancelado? Mas...
- Assassinato! Mataram a Pili, a bailarina.
- Mataram?!
- Foi morta com um punhal por um garoto. Parece que ele apaixonou-se por ela e, quando soube que estava apaixonada por um toureiro ficou louco de ciúmes. Começou a vagar pela cidade, meio alucinado, como se não houvesse mais ninguém no mundo. Era visto, muito freqüentemente, parado em frente a um desses cartazes. E sabe o que é mais estranho? Algumas pessoas, afirmam ser esta loucura contagiosa e que eles mesmos já estiveram, temporariamente, sob seu efeito. São pessoas idôneas, entende? Acho que estão sinceramente equivocadas em sua ilusão. Essas ruazinhas sinuosas e estreitas acabam afetando as mentes mais sensíveis, a ponto de fazê-los confundir o real com o imaginário. Dizem, esses meio-loucos, haverem sentido a solidão em que mergulhara o menino. Dá prá acreditar numa coisa dessas, meu senhor?

- Eu acredito ! Eu acredito!

- Hoje a tarde, pelo que ouvi dizer, o garoto se aproximou dela com um
buquê de flores vermelhas, e as ofereceu. “Para mim?” disse a pobre Pili; ele apenas acenou com a cabeça em assentimento, os olhos negros, alucinados, cravados nela.
E quando ela tomou as flores e as levou ao rosto para cheirá-las, sentiu o punhal penetrar-lhe o peito. Só então seus olhos deram com os do menino. Conseguiu dizer ainda: “Pepe! Pepe é você?”
O menino teve um clarão de lucidez e, num segundo, tudo compreendeu.
Soube que não poderia mais refugiar-se em sua loucura e, com o mesmo punhal ainda sujo de sangue, rapidamente, antes que a multidão lhe pulasse em cima, cravou-o no peito, bem no ponto onde havia feito uma marca, dois dias antes, quando perguntara ao pai onde, exatamente, ficava o coração. Dá prá acreditar numa coisa dessas, meu senhor? Ela, era mãe dele.

- Dá sim! Acredito sim, meu amigo.

Paguei o garçom, pelo café e por sua história, e dirigi-me ao teatro onde havia um daqueles cartazes.
Parei muito próximo e desafiadoramente sustentei o olhar da cigana. Continuei a encará-la enquanto ouvia a voz lastimosa do cantor
flamenco e as palmas sincopadas.
Continuei olhando-a, ainda por muito tempo, mesmo sabendo-me, agora, sozinho na praça vazia.



FLORES VERMELHAS

A ruazinha era estreita, de pedras milenárias, lisas pelo circular dos pedestres e das rodas dos carros a acariciá-las e agredi-las por gerações e gerações de homens mal-humorados, de mulheres reprimidas, carregados de seus “grises” pensamentos e desejos insatisfeitos, não manifestos, expressos somente pela dança flamenca, tão visceral e milenária quanto a rua, os homens e seus desejos.
Por essa rua descia o menino.
Ia ao padeiro, próximo, a apenas duas quadras - que são duas quadras num lugar tão sem similitude, onde cada rua obedece ao capricho inextrincável de seus construtores? - estando justamente no passo onde a viela descrevia curva aberta e suave, para a direita.
Era, neste ponto, como um desfiladeiro estreito, com duas paredes lisas a cada lado, verticais, sem uma porta ou janela.
Apenas lá no alto, um parapeito de sorteia avançava um pouco sobre o passeio, sustentando enorme vaso de alabastro, com umas flores vermelhas, tão comuns e das quais ele não sabia o nome.
Foi neste exato ponto que Manoel deparou com o monstro.
A princípio não o viu. Pressentiu-o apenas, quando se deleitava em olhar a sorteia, vendo-a passear por sobre sua cabeça, como se fora enorme nave pesada, flutuando por uma força ao mesmo tempo mágica e tecnológica de eliminação da gravidade.
Um arrepio eriçou-lhe os pêlos da nuca e dos braços e, antes que seus olhos pudessem constatar a monstruosa presença, ouviu-o. Um bufo medonho moveu o ar e sentiu o hálito vindo de suas entranhas, cheirando a feno decomposto.
Reconheceu-o imediatamente.
Era “Bronze” o touro mais terrível de que já se tivera notícias. Conhecia-o dos cartazes os quais anunciavam a corrida de hoje à tarde.
Desde uma semana não se falava em outra coisa na pequena cidade.
A presença de “matadores madrileños” e touros famosos, como o “Bronze”, punham um alvoroço e um comichão em toda a gente.
Manoel sentia-se incomodado com toda essa efervescência. Gostava, no entanto, de penetrar no burburinho e, embora não partilhasse as mesmas paixões - era, por demais, sensível e delicado para apreciar os esportes sangrentos – deleitava-se na contagiante alegria, no ritmo das palmas; com as cores das bandeiras, com os cavalos – como são belos os cavalos, com seus olhos negros e profundos, iguais aos das belas ciganas, sem serem, porém perigosos como estas –, e tudo que seus olhos pudessem devorar, com sua fome de esteta, devorava. Não em grandes bocados, como o faziam todos, mas com suaves mordidelas.
Mastigava tudo. Revirava na boca sentindo cada nuance de sabor e quando alguma coisa era quente demais, apimentada demais, cuspia-o fora.
Nunca pudera suportar as corridas nas praças de touros.
Uma única vez, levado por sua mãe, que era enamorada de um “torero”, fora a uma dessas arenas de atrocidades e, quando o matador, com elegância e galhardia atrozes, fez o touro enorme ir ao chão, chafurdando numa poça de seu próprio sangue, sentiu: desamparo e angústia inexprimíveis.
Não somente compreendeu como também sentiu o desespero impotente e os estertores melancólicos do touro.
A multidão em delírio atirava seus “sombreros” e sua mãe, num gesto paradoxalmente elegante e feminino, arremessa na arena uma flor vermelha, daquelas que agora pairam sobre sua cabeça, pendentes daquele vaso suspenso na soteia.
O matador, para sua surpresa – era tão surpreendível nesta época –, apanha a flor, beija-a, faz uma reverência exagerada, e ele vê então a cena mais repugnante, a qual pensaria impossível não a estivesse presenciando: O toureiro saca um punhal da cintura, ergue-o sobre a cabeça, exibindo-o à multidão que o aclama em delírio, e, com golpe rápido e preciso, de açougueiro, decepa uma das orelhas do animal, coloca-a sobre um lenço e, para espanto e desespero de Manoel, se põe a caminhar, com a elegância orgulhosa tão peculiar aos desse ofício, em direção a ele estende-lhe o objeto sangrento e quando ele recua repugnado, percebe ser à sua mãe que se destinava o “regalo”.
Não compreende porque, ao invés de recuar como ele fizera, ela, embevecida e ruborizada, com um leve inclinar de cabeça, toma em suas mãos delicadas a grotesca oferta, levando-a de encontro ao peito imaculadamente branco, num gesto que denotava o quanto a lisonjeava o presente.
Nunca mais pode retornar a uma praça de touros, e também, nunca mais pode olhar sua mãe com os mesmos olhos.
Agora, quando havia corridas, gostava de vagar pelas ruazinhas, sentindo seu silêncio, seu frescor e as tantas histórias impressas em suas paredes, em suas pedras, nas portas; nas janelas pelas quais, por vezes, vislumbrava aprazível e fresco jardim interno, onde, quase sempre, havia uma fonte espalhando seu doce murmúrio de água com notícias de um mundo mais fresco, úmido e pacífico, onde não havia corridas, nem touros, como esse que agora espumava à sua frente batendo os cascos no chão.
Pensou correr. Sabia, no entanto - por ouvir falar –, ser impossível vencer o touro numa corrida Sabia-se perdido. Era o seu fim e não o temia.
Não possuía qualquer fé, nem era seguidor, ou sequer conhecia qualquer doutrina filosófica. Sentia, apenas, ou pressentia ser a vida algo mais amplo, maior e inextrincavelmente superior ao organismo físico.
A dor, porém, a imagem do corpo dilacerado, causava-lhe sensação de desamparo insuportável. Fechou os olhos, pronto para o sacrifício inevitável. Pensou em sua mãe, em como havia se distanciado dela nos últimos tempos. Lembrou-a com saudades. Imaginou-a abraçando-o em seu seio farto, macio, odorífico... Sangrento... Com o sangue da orelha do touro.
Abriu os olhos, pois pressentiu um movimento estranho, e deparou com os olhos do animal no exato momento em que este os voltava para cima.
Buscou na direção desse olhar e encontrou, à “soteia”, o enorme vaso caindo sobre eles. Percebeu ainda, neste processo de distensão do tempo, o braço de uma mulher; a mão que havia empurrado o vaso. Uma mão familiar. Reconheceu-a pelos anéis, pelas pulseiras, pelas unhas, pela forma alongada dos dedos, pela elegância e delicadeza, pela aura de sensualidade a envolvê-la. Mais que isso, reconheceu-a: pelos fios invisíveis a uni-lo a esta mão. Era-lhe mais familiar que a sua própria mão. Lembrou-se, neste átimo, de todas as vezes que esta o afagara, de todas as vezes que o abençoara. Lembrou claramente de algum dia quando esta mão segurava um seio, intumescido, levando-o a sua boca ávida. Reconheceu a mão de sua mãe. Soube então estar salvo, da dor do sangue, da náusea.

Dolores ria muito. Estava feliz como há tempos não pudera estar.
Após a morte do marido, havia se fechado num luto pesado, restando-lhe, de consolo e de fardo - por vezes bastante pesado -, seu filho Manoel, a quem por anos seguidos dedicou todos os momentos de sua insípida existência.
Ultimamente, porém, inspirada pela onda de cultura libertária que invadia seu país, se havia livrado do luto e deixava fluir sua natureza sensual de cigana andaluz. E, finalmente, o momento tão esperado acontecera. O toureiro, após breves encontros, levara- a seu apartamento.
Tomaram “Moscatel” e, nus, por longas horas, olharam-se, acariciaram-se, ouvindo a suave guitarra vinda de um aparelho de “cassete”.
Agora, apenas levemente vestidos, desfrutavam o sol aprazível da “sotéia”.
Dolores havia se aproximado do vaso com as flores vermelhas e quando sentiu seu odor, lhe veio à memória o dia em que atirara à praça outra igual àquelas.
Quem sabe ele apenas a apanhara por ser igual a essas que tinha em casa e por uma dessas inexplicáveis coincidências do destino, tenha agora fechado um círculo, de um tempo que não passa e sim apenas descreve circunferências, fazendo voltas, ora pequenas, ora infinitamente grandes.
Talvez apenas por isso – por haver reconhecido a flor - ele a tenha pego e lhe aja oferecido a orelha. E agora ali estavam: ela, o seu toureiro e as flores vermelhas.
Num pressentimento que lhe apertou o estômago, percebeu faltar ainda algum elemento para fechar este círculo, o qual se concluía, justamente nas flores vermelhas. Faltavam: seu filho e o touro. Pensava no exato momento em que estendia a mão par colher uma delas.
O toureiro, que observava seu ensimesmamento, ao tempo em que se deleitava com sua beleza; aproxima-se silencioso e... no momento em que a mão roçava levemente uma das hastes, enlaça-a pela cintura.
Dolores vê-se arrancada, de súbito, da densa atmosfera de maus pressentimentos em que havia mergulhado. Um estremecimento percorre seu corpo fazendo-a movimentar o braço de modo involuntário, batendo no pesado vaso, fazendo-o despencar sobre a viela. Tentou ainda, num gesto instintivo, alcançá-lo.
E foi este gesto, o último, como um adeus, que presenciou Manoel, segundos antes de ser atingido pelo vaso.
O touro, assustado, se põe em fuga, com apenas mais um susto somado a tantos outros dos quais se compunha sua existência, atribulada, de convívio com os homens. .
Dolores, retardada um pouco pelos braços do toureiro, tentava olhar para a rua. Ele, porém, se divertia a larga com seu nervosismo, com seu embaraço, pensando deverem-se estes a perda do vaso .
Por fim, envolvendo-a mais fortemente ainda, a conduz para a alcova, onde agora soava no aparelho “cassete” uma voz lastimosa de cantor flamenco, secundada por exuberante guitarra .
- “El niño solito en la calle...” – canta a voz chorosa, e o toureiro a beijava no pescoço.
- “Solito, com una flor roja en el pecho...”
- E o toureiro a atirava sobre o catre –
- “Muerto, sin dolor, ni sangre...” – e o toureiro a penetra, como penetraria uma espada, em uma arena sangrenta, à vista da multidão, num touro feroz e já mortalmente ferido.

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